segunda-feira, 30 de agosto de 2010
A Força das Palavras
Muitos amantes de livros vão à livraria a procura de novos títulos e lançamentos, e sempre encontram aquilo que tinham em mente. Outros, são encontrados pelos livros cujos assuntos os aguardavam. Acho que pertenço a esse segundo grupo de leitores, porque sempre que vou à livraria buscando algum assunto, acabo saindo com um livro que por acaso aparece do nada e me chama a atenção.
Contos de Eva Luna, de Isabel Allende, é um desses casos inexplicáveis. Percorrendo as prateleiras inutilmente atrás de um determinado título, me deparei com esse nome poético, envolto em aura de mistério. O nome Eva Luna , segundo eu soube, carrega forte simbologia, pois Eva, vem do hebraico "hawah", que significa viver ( é o arquétipo de mãe que deu origem à vida , que populou o mundo na cultura judaico- cristã ) e Luna, palavra em latim para Lua, evoca o símbolo do poder feminino nas tradições antigas. Constatei tambem, que a personagem tem estreita ligação com aquela das Mil e Uma Noites.
Eva Luna encarna a Sherazade latino americana e relata estorias deliciosas, com fragmentos de amor, ódio, compaixão, vingança, erotismo, montando inúmeras imagens no caleidoscópio das emoções humanas, tendo como cenário o ambiente socio cultural em que vive. Se as estorias de Sherazade nas Mil e Uma Noites lhe valem cada qual mais um dia de vida, Eva Luna recorre à imaginação de seus contos para reinventar a própria vida, conforme observa Rolf Carlé, seu amado: "Pensas em palavras, para ti a linguagem é um fio inesgotável que teces como se a vida se fizesse ao contá-la”.
Eva Luna, personagem criada no livro homônimo (claro que tambem li esse livro...), publicado anos antes, nasce da união casual entre a mãe, uma criada, e um jardineiro indígena que vai embora antes de seu nascimento. Com a morte da mãe, aos seis anos, Eva passa a levar uma vida incerta, trabalhando como empregada desde a infância, fugindo e vivendo em muitos lugares diferentes, na casa de vários patrões. Ela trabalhou muito, passou fome, mas foi nesse cenário que aprendeu a contar estorias, criando com elas, um mundo diferente, povoado com personagens fantásticos, e mais tarde, transferindo à escrita esse seu dom. Eva vive os tempos das ditaduras e democracias de um país sul americano e sua vida e seus contos refletem a realidade da época.
Eva Luna vence todas as agruras de sua existência e, no final do romance, encontra seu grande amor, Rolf Carlé, um cinegrafista que registra a realidade vigente. Juntos, elaboram novelas com mensagens conscientizadoras à população.
Em Contos de Eva Luna, a arte narrativa da personagem é o fio condutor dos diversos contos do livro, muito deles envolvendo personagens e lugares vindos do livro anterior. E é nessa obra que a porção Sherazade da personagem se evidencia. Eva, a contadora de estorias, transmite pelas palavras imagens de povoados esquecidos em contraste com ricos palácios, homens rústicos que se abrandam com o poder sedutor das mulheres, as miserias e as alegrias das pessoas comuns, as lutas entre as forças da natureza humana.
Um contador de estorias utiliza a palavra de modo a criar imagens e materializar o verbo. Ele empresta seu corpo, sua voz e suas emoções à narrativa, como se emprestasse vida às palavras narradas, levando ao conto uma dimensão realística. O mesmo pode-se dizer de uma estoria lida, porque embora as palvras não soem, ainda descrevem as imagens e as emoções de quem as redige.
O poder de transformação da palavra está condicionado ao uso que se faz dela. Tanto Sherazade quanto Eva Luna manejam as palavras para a transformar a realidade em que se encontram. Sherazade faz uso da narrativa para modificar o comportamento de Shariar, assim como Eva Luna inventa contos para primeiro recriar sua identidade, e mais tarde, denunciar os abusos do poder e as injustiças sociais em que seu país está mergulhado.
Costumamos jogar palavras ao acaso, sem prestarmos muito atenção a elas e sem nos darmos conta que carregam uma energia com a qual moldamos nossa realidade. Esse tem sido um dos princípios das tradições herméticas, mas não precisamos nos iniciarmos nelas para compreendermos a dimensão dessa verdade.
Encerro esse devaneio todo com o trecho de um texto de Lia Luft, entitulado "A Força das Palavras" e escrito para a Revista Veja, em 14 de julho de 2004 :
"A palavra faz parte da nossa essência: com ela, nos acercamos do outro, nos entregamos ou nos negamos, apaziguamos, ferimos e matamos. Com a palavra, seduzimos num texto; com a palavra, liquidamos - negócios, amores. Uma palavra confere o nome ao filho que nasce e ao navio que transportará vidas ou armas.
"Vá", "Venha", Fique", "Eu vou", "Eu não sei", "Eu quero, mas não posso", "Eu não sou capaz", "Sim, eu mereço" – dessa forma, marcamos as nossas escolhas, a derrota diante do nosso medo ou a vitória sobre o nosso susto. Viemos ao mundo para dar nomes às coisas: dessa forma nos tornamos senhores delas ou servos de quem as batizar antes de nós."