sábado, 10 de março de 2012

Eros e Psiquê



Eu ja comentei na postagem Os Deuses Não Estão Mortos que na Mitologia Grega, assim como na sua correspondente Romana, deuses e semi-deuses assemelham-se aos humanos, carregando os mesmos instintos e sentimentos, como um arquétipo da natureza humana. 
E que esses mitos pertencem a uma tradição de ensinamentos para a vida prática, passados de geração em geração, sendo que em cada um de nós existe vários deuses e deusas, compondo nosso repertório humano.
Segundo o americano Joseph Campbell (1904-1987), um dos maiores mitólogos de todos os tempos, se formos  procurar a definição de Mito num dicionário, encontraremos " historia dos deuses ". Em seguida Campbell devolve: "O que é um deus? Um deus é a personificação de um poder motivador ou de um sistema de valores que funciona para a vida humana e para o universo- os poderes do seu próprio corpo e da natureza. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam a nossa vida animam a vida do mundo".
Hoje o tema aqui  é o mito de Eros e Psiquê.
Eros é o deus grego do amor e do desejo, e em tempos arcaicos era considerado um deus primordial, nascido do Caos, conforme descreve Hesiodo em Teogonia ( poema mitológico que fala sobre a origem do deuses e do mundo ). Mais tarde, foi conhecido como filho de Afrodite e Ares. Seu correspondente na Mitologia Romana é Cupido, representado por um menino de asas, carregando seu arco e flechas envenenadas com a poção do amor, e sempre pronto a acertar o coração de alguem, fazendo da vítima mais um apaixonado na Terra.

Salvatore D'Onofrio, escritor e professor italiano naturalizado brasileiro e docente em Teoria da Literatura descreve Eros da seguinte forma:
"O Eros verdadeiro é o deus do amor no seu sentido integral, que engloba corpo e alma. A atração puramente física é animalesca e não humana. É apenas o bicho que tem o período do cio. O homem e a mulher se amam (ou deveriam se amar!) sempre e em todos os lugares por uma comunhão de sentimentos que transcende o aspecto corporal. O erotismo, que verdadeiramente funciona e que faz perdurar a atração recíproca por longo tempo, está no olhar apaixonado, na admiração que o amante sente pelas qualidades físicas e espirituais que consegue enxergar na pessoa amada. A função erótica, que  estimula o desejo de uma forma mais duradoura, está evidenciada na poesia lírica, na pintura, na dança, nos filmes sentimentais, na arte em geral, pois supera o nível do real e penetra no mundo da fantasia, do sonho, do vago sentimento do inacessível".

Psiquê, cujo significado do nome é "sopro da vida" ou "essência que anima" (alma), personifica a alma humana. A palavra de origem grega também significa borboleta e por essa razão Psiquê é representada por uma jovem com asas de borboleta. Seu mito surgiu ligado à Eros, numa das narrativas no livro O Asno de Ouro ( inicialmente entitulado Metamorfoses ), cujo autor  Apuleio ( Lucius Apuleius ), que viveu no tempo do Imperio Romano, era filósofo seguidor de Platão e estudioso letrado, sendo também um iniciado em alguns mistérios ocultos, como o da deusa Isis ( transmutação da morte em vida ) e de Asclepius ( mistérios de Cura ). Sendo Apuleio um místico, as narrativas não são meros contos, carregando muitas simbologias.

Conta a narrativa, que Eros ( Amor ), certo dia, acidentalmente, espetou-se numa de suas flechas e se apaixonou por Psiquê ( Alma), uma bela mortal, tão bela que provocou ciumes em Afrodite, pois os homens deixavam de venerar a deusa para admirar essa linda mortal. O problema é que a seta seria para que Psiquê se apaixonasse por um monstro, a pedido da furiosa Afrodite, mas o resultado saiu bem diferente do esperado e Eros decidiu, por bem, esconder o romance de sua mãe, tomando secretamente Psiquê como sua mulher.
Para isso, nunca se revelava a Psiquê, e permanecia com a esposa apenas no escuro da noite, para que ela não o visse. Outra razão para não se revelar, é que Eros queria ser amado como homem e não como um deus. A bela jovem sentia na carne e na alma o grande amor e carinho de Eros, mas mesmo ficando grávida seguia sem conhecer as feições do marido. Certa noite, porem, cheia de curiosidade e instigada pelos maus conselhos de duas irmãs invejosas, resolveu ascender uma lamparina de azeite para poder ver o rosto do amado, enquanto este dormia, e ficou impressionada com a sua beleza. Tão impressionada, que distraidamente derramou um pouco de azeite quente sobre o ombro  do marido e assim o acordou. Eros ficou desesperado e fugiu, dizendo que fora traido e que o amor não poderia sobreviver sem a confiança. Retorna , então, junto à Afrodite para que ela lhe cure a ferida.
Psiquê fica sozinha e desesperada com seu erro, e assim decide reconquistar o amado. Implora à Afrodite ( a sogra ) que a ajude na reconquista de Eros, mas a deusa recebe Psiquê com muita hostilidade. Por fim, vislumbrando uma vingança, finge que lhe concede o pedido, impondo-lhe 4 trabalhos dificílimos de executar, esperando assim, que Psiquê fracasse.


A primeira tarefa seria separar por espécie uma pilha onde estão misturadas milhões de sementes de  trigo, cevada, milho, papoula, grão de bico, lentilha e favas em uma noite. Psiquê fica sobrecarregada com a tarefa, e entre desespero e exaustão, cai no sono. Momentos antes do sono a  jovem evoca  a ajuda das formigas e de repente surgem milhões delas, e com o trabalho delas, os grãos são separados dentro do prazo. Psiquê desperta com alivio.
Afrodite, surpresa com o cumprimento da tarefa, e muito irritada, ordena o cumprimento do próximo trabalho, ainda mais dificil.

A segunda tarefa de Psiquê consistia em trazer uma tosa de lã dourada, colhida de carneiros dourados, mas chegando perto do lugar onde eles estão,  na margem de um rio, percebe que se trata de carneiros selvagens, debatendo-se enfurecidos com o calor do sol. Sente-se incapaz de cumprir a tarefa e começa a se desesperar, quando ouve vozes sussurradas vindas dos juncos a beira do rio, que lhe contam que à noite, quando os carneiros dormem exaustos e aliviados pela brisa refrescante, ela poderia colher fios da lã dourada, enroscados nos ramos das árvores em que se esfregavam quando se debatiam. E assim Psiquê o fez.

Realizada a segunda tarefa com êxito, Afrodite entre incrédula e irritada, passa a terceira tarefa à bela mortal, que seria encher uma taça de cristal com água da nascente do rio Estige ( o rio da imortalidade ), mas a nascente ficava no alto de um penhasco, impossível de escalar, e as águas caiam num vale cercado de dragões. As próprias águas aconselharam prudência à Psiquê, que se afastasse dali. A jovem ficou paralisada, sem saber o que fazer. Mas Zeus, compadecido do amor entre Eros e Psiquê, envia uma águia para ajudar na tarefa, e esta leva a taça até o alto do penhasco, enchendo-a com a água e trazendo-a de volta à bela mortal.

Quando Psiquê entrega a taça com a preciosa água à Afrodite, recebe com assombro a quarta e última tarefa.
Na quarta tarefa, Psiquê é enviada por Afrodite ao reino dos mortos para conseguir uma poção de beleza com Perséfone. Desesperada com a tarefa imposta, Psiquê sobe numa torre muito alta para de lá se jogar, pois pensa que apenas morrendo é que conseguiria entrar no reino de Hades, marido de Perséfone e Senhor dos Mortos. Porém, a torre fala com Psiquê e lhe revela como entrar no reino dos mortos sem precisar morrer ( "vá ao Monte Tenaro e encontre a gruta que te leva ao reino subterraneo", ensina ) e a instrui como agir durante a sua jornada pelo reino, finalizando com uma forte recomendação de que não aceitasse nada que lhe fosse oferecido para comer e que jamais abrisse a caixa com o conteudo dado por Perséfone.

E Psiquê, seguindo à risca a orientação da torre em sua jornada, paga o barqueiro Caronte na ida e na volta com uma moeda; encontra um homem coxo que lhe pede ajuda para apanhar a lenha que caíra de seu jumento e nega ajuda; encontra um homem que está se afogando e também recusa ajudá-lo; encontra as três Tecelãs do Destino e, apesar do desejo de interagir com elas, segue seu caminho; fica diante de Cérbero, o cão de três cabeças e guardião dos infernos, e atira um pedaço de pão na ida e outro na volta e em ambas situações as cabeças brigam entre si, pois é apenas um pedaço de pão e três cabeças e enquanto as cabeças de Cérbero brigam, Psiquê se aproveita e passa por eles; encontra Perséfone e lhe faz o pedido da poção de beleza. Perséfone concede a poção embelezadora, que é entregue dentro de uma caixa à Psiquê e lhe oferece um banquete, que gentilmente é recusado.

Na jornada de retorno, no entanto, a bela não resiste à tentação de experimentar em sí mesma a poção de beleza, e ao abrir a caixa cai num sono semelhante à morte ( um coma ) .
Eros, que havia perdoado Psiquê e há muito sentia sua falta, sabendo do  que aconteceu com a amada, pede à Zeus permissão para despertá-la, fechando a caixa novamente.
Depois de refeita, Psiquê vai até Afrodite e lhe entrega a caixa com o conteudo cedido por Perséfone. Enquanto isso, Eros voa até  Zeus e lhe pede que o ajude a fazer com que Afrodite aceite sua união com Psiquê, e o deus dos deuses atende seu pedido, convencendo a deusa do amor e da beleza a  abençoar aquela união..

Zeus, então, pede ao deus Hermes ( Mercúrio para os romanos ) que traga Psiquê ao Olimpo, onde seria celebrado o casamento da jovem com Eros, e durante o ritual  lhe é oferecido a ambrosia, bebida que a torna imortal, não restando a Afrodite senão concordar com a união e abençoa-la.
Depois de certo tempo, nascia a filha de Eros e Psiquê e lhe deram o nome de Prazer.


O mito de Eros e Psiquê faz uma metáfora da evolução e da transformação individual; simboliza o emergir da consciência ( amadurecimento ) na vida amorosa, a capacidade do indivíduo se relacionar com outra pessoa de forma verdadeira. Amadurecimento não acontece da noite para o dia, este é fruto de um trabalho interior feito em etapas.
Não é por acaso que Psiquê é representada com asas de borboleta, pois antes de ganhar asas coloridas e poder voar, a larva teve que passar um ciclo no casulo até se transformar em borboleta.
Neste mito, Afrodite revela sua face mais severa, impondo à Psiquê tarefas sofridas, perigosas; a deusa do amor envia a mortal para terras e experiências sombrias. Mas é justamente ante adversidades e crises que aprendemos nossas lições de vida. Psiquê  retorna dos desafios cada vez mais sábia, mais preparada. Afrodite dá a matéria prima para a transformação e Psiquê segue usando suas ferramentas internas para lidar com os desafios e se transformar.
No final Afrodite se rende e dá a benção para a união. Amor e Alma estão prontos para se unirem na dimensão divina.


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